Vítimas dos efeitos da crise climática de diferentes partes do mundo estarão reunidos no Brasil durante a realização do G20 Social para avançar na construção de um movimento internacional. O objetivo é criar uma organização que atue de forma articulada em debates considerados centrais, como a garantia de direitos de populações vulneráveis e a necessidade de uma transição energética justa. É o que explicou Sônia Mara Maranho, integrante do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), em entrevista concedida à Agência Brasil.

O G20 Social será de 14 a 16 de novembro no Rio de Janeiro. É uma inovação instituída pelo governo brasileiro. O país preside o G20 pela primeira vez desde 2008, quando foi implantado o atual formato do grupo, composto pelas 19 maiores economias do mundo, bem como a União Europeia e mais recentemente a União Africana. Nas presidências anteriores, a sociedade civil costumava se reunir em iniciativas paralelas à programação oficial. Com o G20 Social, essas reuniões foram integradas à agenda oficial construída pelo Brasil.

Boa parte da programação do G20 Social é composta por atividades propostas e executadas por diferentes organizações. O MAB, junto com outras entidades, está envolvido na preparação de duas delas, ambas no dia 14 de novembro. A primeira, às 11h, abordará o tema da Transição Energética Justa, Soberana e Popular para o Desenvolvimento Sustentável da Humanidade. A outra, às 14h, se intitula Crise Climática: Desafios das Populações Atingidas e o Acesso à Políticas Públicas.

Ao final da programação, um documento síntese do G20 Social deve ser apresentado e, em seguida, entregue aos governos de todas as nações na Cúpula dos Líderes do G20, evento nos dias 18 e 19 de novembro, encerrando a presidência brasileira. O país será sucedido pela África do Sul.

De acordo com Sônia, as duas atividades que o MAB lidera são encaradas pelo movimento também como uma preparação para a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 30), que reunirá líderes globais na cidade de Belém em novembro de 2025, e para um encontro internacional dos atingidos que está sendo programado para acontecer alguns dias antes. Na entrevista à Agência Brasil, a ativista avaliou que a instituição do G20 Social revela uma intenção de se estimular a participação popular, mas considerou que ainda há limitações.

Sônia destacou a importância das lutas populares. Ela citou a mobilização frente aos rompimentos das barragens da Samarco, que causou 19 mortes e impactos em Mariana (MG) e em toda a bacia do Rio Doce em 2015, e da Vale, que matou 272 pessoas na cidade de Brumadinho (MG) em 2019. Também tratou como referência a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), que foi aprovada pelo Congresso Nacional no ano passado incorporando reivindicações populares.

A integrante do MAB manifestou ainda preocupação com as violações de direitos envolvendo novas frentes de exploração mineral. Mencionou o exemplo do lítio, que tem sido frequentemente apontado como fundamental para a transição energética devido à sua demanda para a produção de baterias. Confira a entrevista:

Agência Brasil: Quais temas estarão no centro das intervenções do MAB durante o G20 Social?

Sônia Mara: São duas mesas autogestionadas que estamos construindo de forma coletiva. Uma delas é sobre a transição energética justa e o MAB vai apresentar na mesa uma análise do ponto de vista dos atingidos por barragens. Iremos discutir a questão da soberania, da participação da sociedade na construção de um projeto de desenvolvimento sustentável e soberano. E na outra vamos debater estratégias diante da crise climática. O que chamamos de crise climática é a crise de um sistema que interfere no clima como um todo. É uma crise internacional.

No Brasil, já existem diversas mobilizações chamando atenção para a necessidade de mudanças. Tivemos reações diante das cheias no Rio Grande do Sul e diante das chuvas intensas em Guarulhos, na grande São Paulo. Isso para citar locais onde já existem bases de atingidos organizadas fazendo luta, apresentando suas pautas, discutindo com os governos municipais e estaduais e também com o governo federal.

Esperamos que a mobilização cresça. Temos as cheias que acontecem no Nordeste no final do ano e que geralmente não são devidamente noticiadas. Em Minas Gerais, devido aos rompimentos das barragens que ocorreram em Mariana e em Brumadinho, toda vez que chove, diversas cidades ficam embaixo d’água. O Rio Paraopeba e o Rio Doce estão assoreados de minério e lama e as enchentes se tornaram mais frequentes. No Norte, acompanhamos o que vem acontecendo, sobretudo em Rondônia. Com a falta de chuva, os rios estão secando. Isso interfere no transporte da região Amazônica. Interfere na produção das famílias nas várzeas, no acesso à água e à alimentação, no acesso à saúde. Tudo isso depende dos rios.

Os riscos existem mesmo nos grandes centros urbanos. Em Belo Horizonte, sempre que chove forte, ruas do centro se alagam porque o rio que passava ali está todo encanado, cimentado. Então quando tem tempestade, ele verte para cima, engole carros. A forma como estão estruturadas as nossas cidades é um problema que é agravado com o aumento da pobreza, que leva à ocupação de lugares que deviam ser de preservação ambiental. Os territórios mais vulneráveis vão sendo ocupados pelas populações que não têm para onde ir. Então nós precisamos repensar toda a forma de organização do processo habitacional, dos cuidados com os rios, com a fauna e com a flora, enfim, com a natureza como um todo.

Agência Brasil: O G20 Social será também um momento para avançar na articulação com as organizações internacionais que também estão pautando essas discussões?

Sônia Mara: Estamos avançando na construção de um movimento internacional dos atingidos. Não são só atingidos por barragens. São atingidos da crise climática. Os debates que estamos propondo no G20 integram também uma preparação para a COP-30. E para o nosso encontro internacional dos atingidos, que vai ser em novembro do próximo ano, antes da COP-30. A gente vai reunir os atingidos dos cinco continentes. Estamos construindo uma estratégia de organização para fazer a luta. Vimos agora o que aconteceu na Espanha. As imagens mostraram um cenário muito parecido com o que aconteceu no Rio Grande do Sul.

Os tornados, principalmente nas ilhas do Caribe, têm sido também cada vez mais fortes. Cuba acabou de enfrentar um dos maiores da sua história. Tivemos recentemente rompimentos de barragens na Ásia e na África. Nós estamos vivendo um momento de vulnerabilidade da sociedade em todo o mundo, diante do processo de exploração desenfreado de um sistema capitalista que se apropria de todos os recursos naturais. E nós entendemos que os próprios atingidos desse sistema é que são os sujeitos capazes de construir propostas tanto o nível nacional como internacional, através de um processo de organização e de participação.

Agência Brasil: Com a crise climática e a ocorrência de chuvas cada vez mais intensas, a segurança das barragens se torna alvo de novas preocupações?

Sônia Mara: Antes, a gente costumava falar da segurança das barragens. Hoje, a gente fala da segurança dos atingidos. Existem barragens construídas há 20 ou 30 anos e que, ao longo de todo esse tempo, gerou diversos impactos. E o que vemos são populações vulneráveis, mal indenizadas ou não indenizadas, que não tiveram seus direitos respeitados. Há pessoas vivendo em zonas onde não deveria morar ninguém. As empresas não mostram nenhuma responsabilidade com a questão ambiental e social. Em Minas Gerais, temos várias barragens que estão em nível 2 e 3 de emergência conforme a classificação da Agência Nacional de Mineração. Em muitos locais, não foram dadas condições dignas para as famílias saírem.

No mês passado, em Barão de Cocais, as sirenes da barragem da Vale tocaram por engano e mobilizou toda a comunidade. Gerou um grande transtorno, traumas nas crianças. Depois pediram desculpa, disseram que foi sem querer. As populações estão muito vulneráveis perto dessas barragens e também perto dos rios que estão cada vez mais assoreados. Há um sofrimento grande.

As pessoas cresceram em uma comunidade pacífica e, de repente, em todo lugar para onde elas olham passa a ter uma placa indicando rota de fuga. Elas vivem com medo. As empresas organizam treinamentos com a população para lidar com possíveis rompimentos. Isso acelera ainda mais o medo nas pessoas. A chuva era um sinal de energia, de coisa boa, e hoje traz preocupações e gera sentimentos negativos.

Agência Brasil: Qual a importância de levar para o G20 as pautas das populações atingidas?

Sônia Mara: É um espaço de visibilidade, um espaço para trocar experiências com outros países e também com as organizações no Brasil. A crise climática é um tema novo dentro da preocupação mundial. Hoje está todo mundo preocupado, mas até ontem não era assim. Então, ainda estamos construindo um processo de luta e de organização popular para enfrentar as consequências da crise.

Sem dúvida nenhuma, é também um espaço para se posicionar diante dos governos, que precisam olhar com seriedade para o processo de reorganização dos territórios. Vou te dar o exemplo do Rio Grande do Sul, onde praticamente todos os municípios foram afetados pelas chuvas do início do ano. Muitos lugares estão se tornando áreas fantasmas. As famílias não vão mais voltar, as famílias não querem mais viver lá. Abandonaram os locais. Então o governo tem que pensar uma forma participativa de como conduzir a reconstrução. Esse é um ponto importante. É preciso que os atingidos da crise climática sejam respeitados, que o processo de recuperação ocorra de forma construtiva.

Não é só uma questão de dinheiro. Dinheiro é importante. Mas é também uma questão de participação social. Do contrário, os municípios usam o dinheiro para outras finalidades. O recurso não chega para os atingidos e os problemas não são solucionados. E sabemos que isso acontece em todo o mundo.

Agência Brasil: Você percebe uma abertura entre os países do G20 para incorporar as pautas dos atingidos?

Sônia Mara: As conquistas que nós tivemos no Brasil no último período, com o governo atual, servem como uma referência internacional. Nessa semana, tivemos por exemplo, reuniões com representantes do governo da Colômbia. Eles estavam interessados em ouvir os atingidos por barragem no Brasil, alguns parlamentares e representantes do Ministério de Minas e Energia, para entender como foi construída a PNAB.

A Colômbia está pensando em elaborar um legislação similar, porque ela tem hoje o terceiro maior potencial hídrico da América Latina e já possui muitas barragens. Posso dizer que há esse diálogo com países que possuem governos mais à esquerda, dispostos a construir marcos regulatórios, leis, órgãos e fundos que ofereçam repostas para a questão dos atingidos.

Agência Brasil: A discussão em torno de crimes ambientais como os ocorrido em Brumadinho e Mariana podem ser levados à mesa das potências do G20?

Sônia Mara: Para conseguir chegar numa mesa de debate com as grandes empresas e os governos, a gente precisa ter correlação de força. Se não, você é isolado, é cooptado, é exterminado. Veja que ninguém foi condenado pelas tragédias em Mariana e em Brumadinho. Isso acontece porque não existe na atual correlação de força uma participação social na grandeza necessária para amedrontar as empresas e todas as instituições que deveriam fazer a lei valer.

Veja também que os acordos que estão sendo feitos não são suficientes para repor aquilo que se perdeu em todo esse tempo. Já são nove anos em Mariana. Em janeiro, vamos para os seis anos em Brumadinho. As empresas conseguem ter uma força diante dos governos que ela impõe a não participação dos atingidos na elaboração dos acordos e o não julgamento dos culpados. E ela ainda se coloca como o órgão que vai cuidar das suas próprias vítimas. Isso é muito ruim. Quando o próprio criminoso cuida de suas vítimas, ele cria critérios excludentes, não vai reconhecer os direitos, não vai fazer o que é o correto diante de todos os danos causados.

Enfim, eu não sei se nós vamos conseguir chegar onde gostaríamos, para apresentar as proposta que nós temos para que o Brasil e o mundo enfrentem a crise ambiental e garantam uma transição energética justa. Mas nos cabe aproveitar os espaços para continuar fazendo a luta e mostrar as contradições no sistema.

Eu acho que a abertura do governo brasileiro para construirmos o G20 Social revela uma intenção de estimular a participação popular. Ainda assim, ela não tem o peso que nós gostaríamos. Não garante que a gente consiga dialogar com o mesmo poder com as empresas e com os governos. Mas as forças populares vão colocar a sua avaliação e a sua crítica e vão apresentar suas propostas diante de tudo que está colocado hoje nesse sistema que está colapsado.

A exploração da forma como está sendo feita hoje vai acabar atrasando o desenvolvimento das nossas nações. Os danos e as consequências recaem sobre a classe trabalhadora, que sustenta todo processo de produção que é construído socialmente, recaem sobre os mais pobres, os negros, as mulheres, os povos indígenas, os quilombolas e assim por diante. São esses sujeitos que estão se organizando pra fazer parte de um processo de mudança.

Agência Brasil: A mineração é uma atividade econômica com forte presença de empresa multinacionais, que atuam em diferentes países. Não por acaso, o processo de reparação da tragédia ocorrida em Mariana chegou à Justiça inglesa, onde atingidos processam a BHP Billiton, que possui sede em Londres e é uma das acionistas da Samarco. Como os países podem se preparar melhor para oferecer respostas satisfatórias diante desse cenário?

Sônia Mara: As populações precisam ser ouvidas. Os atingidos não são contra o desenvolvimento. O problema é que as decisões são centralizadas e tudo virou mercadoria. Como vamos pensar assim em uma transição energética justa? Os recursos naturais continuam sendo mapeados por essas empresas em todo o mundo.

Em Minas Gerais, por exemplo, as famílias do Vale do Jequitinhonha estão agora sofrendo com a exploração do lítio. É uma exploração sem nenhuma responsabilidade, sem cuidado com os atingidos. Só que antes, as empresas chegavam e determinavam quem era atingido e quem não era. E adotava as medidas que julgava suficiente. Hoje, nós temos a PNAB. Ainda precisamos fazer ela sair do papel, entrar em vigor de fato. E a partir dela, trazer justiça para os atingidos.

A luta em defesa dos atingidos também precisa ser globalizada. Uma empresa como a BHP Billiton precisa ser julgada e precisa cumprir com a sua responsabilidade. Ela precisar arcar com o crime que cometeu. Da mesma forma, empresas brasileiras que cometerem crimes em outros países também precisarão responder por eles. Eu acho que aqui entra o debate da soberania que a gente precisa construir entre as nações e entre os governos. Novas políticas e marcos regulatórios precisam ser construídos para que o povo seja respeitado. Eu não posso ir para um outro país e cometer um crime. Nenhuma pessoa pode fazer isso, uma empresa também não pode. Não dá pra aceitar que não aconteça nada como uma empresa que tem o lucro em primeiro lugar, que não indeniza, que mata, que continua minerando, que continua se apropriando dos territórios.

Fonte: Agência Brasil

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